Notícias

NOTA CONJUNTA FETIPA-BA E FNPETI SOBRE O DESCUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL NO CASO DA EXPLOSÃO DA FÁBRICA DE FOGOS DE ARTIFÍCIO DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS (11 DE DEZEMBRO DE 1998)

Crédito: Reprodução
Crédito: Reprodução

O Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente da Bahia (FETIPA-BA) e o  Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (FNPETI), no contexto de mobilização nacional ao enfrentamento do trabalho infantil em todo o país, expressam preocupação e indignação pela constatação de ausência de providências urgentes e estruturantes por parte do poder público brasileiro diante do caso da explosão da fábrica de fogos de artifício de Santo Antônio de Jesus, Bahia, ocorrida em 11 de dezembro de 1998, que resultou na morte de 22 crianças e adolescentes, entre as 64 vítimas fatais, e seis sobreviventes, gravemente feridas. A tragédia gerou danos físicos, econômicos, psíquicos e sociais às famílias e à comunidade.

Passados quase 25 anos da tragédia de Santo Antônio de Jesus/BA, o Estado brasileiro, nas suas diversas instâncias, ainda não cumpriu integralmente as medidas impostas pelas decisões do Poder Judiciário Brasileiro, e permanece descumprindo a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, demonstrando sua omissão e revelando a perpetuação das violações de direitos das e dos vitimados e seus familiares.

O caso foi levado à Corte de Justiça Interamericana, com condenação do Estado brasileiro em razão da violação de direitos humanos das vítimas e seus familiares, pelo descumprimento de regras de saúde e segurança para prevenção da tragédia; pela falta de proteção às pessoas que trabalhavam na fábrica de “Vardo dos Fogos”; pela falta de fiscalização das condições de trabalho e daquela atividade econômica, incluindo o trabalho infantil; pela situação de discriminação e pobreza em que se encontravam as pessoas que ali trabalhavam. 

A condenação internacional do Brasil também decorreu da violação do dever de reparação justa e integral às vítimas e familiares, pela negação do direito de acesso à justiça, em razão do excesso de prazos na conclusão de processos judiciais e da violação de garantias judiciais verificados após o acidente. Exemplo disso, o fato de o dono da fábrica não ter cumprido pena em razão da prescrição e, o fato de, até esta data, nenhum dos demais acusados terem contra si sentença criminal transitada em julgado. Além disso, com a ausência de responsabilização criminal, há enorme dificuldade de obtenção da reparação civil.

No âmbito da justiça trabalhista, das 76 ações trabalhistas promovidas, 30 foram arquivadas e 46 foram julgadas improcedentes em primeira instância – sendo que, após recursos, foram julgadas parcialmente procedentes apenas 18 das demandas apresentadas e uma única totalmente procedente. Os processos trabalhistas remanescentes foram pagos no ano de 2023.

Em âmbito administrativo, houve processo promovido pela 6ª Região Militar do Exército Brasileiro, determinando o cancelamento definitivo do registro da empresa, porque constatadas irregularidades, incluindo ausência de segurança nas instalações; fabricação de pólvora negra sem a respectiva autorização; armazenagem de grandes quantidades de pólvora branca sem autorização ou registro, inexistência de extintores na maioria dos depósitos; entre outros. Vale registrar que a fábrica continuou funcionando por muitos anos após essa decisão.

Reconhecendo omissões e negligências do Estado brasileiro e violações à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em 15 de julho de 2020 a Corte Interamericana de Direitos Humanos, publicou decisão condenando o poder público e destacando que a tragédia da fábrica de fogos em Santo Antônio de Jesus se associa a quadro de desigualdade e exclusão social por questões socioeconômicas, racismo estrutural e violência de gênero, vinculando-se o trabalho informal e precário a elementos como a pobreza e falta de acesso à educação formal, com impacto ampliado em mulheres residentes de bairros periféricos do município, marcados por problemas como a falta de infraestrutura, predomínio de pessoas com baixos níveis de educação formal e renda, com prevalência de questões estruturais que produzem e reproduzem o trabalho informal e precário de fabricação de fogos de artifício.

Destacou ainda a decisão que a atividade pirotécnica de fabricação de estalos de salão expõe a presença de trabalho feminino de mulheres, crianças e pessoas idosas, com intensa precarização, utilização do trabalho infantil, exclusão do trabalho formal e de direitos trabalhistas e da cidadania, constituindo trabalho ocupado por mulheres que não concluíram o ensino fundamental e que começaram a atividade ainda na infância. Consta da decisão que se tratam de mulheres marginalizadas na sociedade e sem outras opções de trabalho, sendo expostas a discriminações de raça e de gênero, revelando padrão de discriminação interseccional e a transmissão de condições ampliadas de vulnerabilidade de forma intergeracional.

Aponta a sentença que a violação de direitos seguiu o padrão de violações sistematicamente verificadas no Estado brasileiro: 

39. As vítimas sofreram uma discriminação estrutural, em virtude de pertencer a setores historicamente marginalizados – cuja origem está vinculada ao fenômeno da escravidão –, que se manteve no tempo, à margem dos avanços normativos que nunca tiveram efetividade real. Além disso, sofreram a discriminação intersecional produzida por pertencer a categorias de discriminação elencadas pela Convenção Americana: etnia, gênero, idade, pertencimento social e outras que confluíram em um feixe de violações a seus direitos”[1].

É importante chamar atenção que a sentença estabelece a importância de adoção de “Medida de não repetição vinculada à intersecionalidade da violação de direitos verificada” (item IV) para reverter o “padrão estrutural de discriminação comprovado em relação a mulheres, crianças e adolescentes” (item 45), exigindo-se do Estado que “atue com máxima diligência em seus deveres de garantir e respeitar os direitos humanos violados (art. 1.1. da Convenção) e que adote as medidas oriundas desta sentença, solicitando a cooperação internacional adequada para seu cumprimento” (item 51).

Vale ressaltar que “medidas de não repetição” são para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos um dos preceitos da reparação integral e visam alterar as circunstâncias estruturais que possibilitaram que as violações de direitos humanos ocorressem. A fim de promover o acesso à justiça material e combater a impunidade, a jurisprudência da Corte Interamericana vem apontando a responsabilização daqueles que causaram os danos, baseada em investigações de acordo com o devido processo legal, observando as garantias processuais.

Assim, considerando que reforça a decisão internacional o direito humano da criança de ser protegida da exploração econômica e de trabalhos perigosos que possam interferir em sua educação ou afetar sua saúde ou desenvolvimento (art. 32 da Convenção sobre Direitos da Criança), e que há no Brasil situação estrutural de violação de direitos das crianças e adolescentes, bem como que o trabalho infantil afeta os grupos em condição de ampliada vulnerabilidade, com a proximidade do advento do marco temporal de 25 anos da explosão, observa-se que nenhuma pessoa foi efetivamente punida, tampouco foram adequadamente reparadas as vítimas da explosão ou seus familiares nos termos estabelecidos na decisão internacional, que em diferentes momentos destaca que políticas de proteção social e infantil devem chegar para todos e especificamente para famílias em setores não estruturados da economia.

Por esta razão, e na ocasião desta manifestação, o FNPETI, em adesão à pauta que vem sendo promovida pelo FETIPA-BA no Estado da Bahia, vem exigir o cumprimento de todas as obrigações impostas até o momento aos responsáveis pelo episódio, direcionando em especial ao Estado brasileiro e seus entes federados implicados, por sua obrigação legal e dever de estruturação de política públicas, com ênfase ao pedido de realização das seguintes imposições condenatórias, com urgência: 

- a efetiva, gratuita e imediata atenção e cuidado à saúde física e mental de sobreviventes e familiares das vítimas falecidas e sobreviventes, incluindo o tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, quando for o caso, às vítimas que o solicitem;

- a produção de material para rádio e televisão em relação aos fatos do caso e à decisão, com especial destaque para a proibição do trabalho infantil; 

- a adoção de medidas que garantam a realização de inspeções sistemáticas e periódicas nos locais de produção de fogos de artifício, tanto para que sejam verificadas as condições de segurança e salubridade do trabalho, quanto para que seja fiscalizado o cumprimento das normas relativas ao armazenamento dos insumos, considerando que, segundo a decisão internacional, as fiscalizações compõem “medidas de proteção” em favor das crianças, por permitirem identificar locais em que não estejam sendo cumpridas a legislação nacional e internacional a respeito da proibição de trabalho infantil ou que represente perigo a integridade física ou a saúde de crianças e adolescentes;

- seja elaborado e executado um programa de desenvolvimento socioeconômico especialmente destinado à população de Santo Antônio de Jesus, em coordenação com as vítimas e seus representantes, o qual deve fazer frente, necessariamente, à falta de alternativas de trabalho, especialmente para jovens com mais de 14 anos e mulheres afrodescendentes que vivem em condição de pobreza. O programa deve incluir, entre outros: a criação de cursos de capacitação profissional e/ou técnicos que permitam a inserção de trabalhadoras e trabalhadores em outras atividades de trabalho, como o comércio, agropecuária, informática, entre outras atividades econômicas relevantes na região; medidas destinadas a enfrentar a evasão escolar causada pelo ingresso de menores de idade no mercado de trabalho, e campanhas de sensibilização em matéria de direitos trabalhistas e riscos inerentes à fabricação de fogos de artifício. 

- observar que as medidas adotadas devem incluir o apoio às adolescentes grávidas e às mães adolescentes para que continuem sua educação, porque constatada a necessidade de enfrentamento das causas determinantes da evasão escolar das crianças que vivem em áreas urbanas marginalizadas, em especial, as crianças negras, em que se incluem a pobreza, a violência familiar, o trabalho infantil e a gravidez na adolescência;

- pagamento pelo Estado, a título de dano material e danos imateriais, dos valores fixados na decisão internacional, em favor de cada uma das vítimas falecidas e sobreviventes da explosão da fábrica de fogos, com acréscimo para as vítimas menores de 18 anos e para a vítima Vitória França; 

- pagamento de reembolso de despesas feitas pelas famílias durante a tramitação do processo que levou à condenação do Estado brasileiro. 

O FETIPA-BA e o FNPETI expressam sua preocupação e se solidarizam com todas as pessoas afetadas por esta terrível tragédia, emblemático caso de violação de direitos humanos, que ceifou vidas e atestou omissões, falta de políticas públicas e de proteção do Estado em relação às condições de vida e de trabalho decente na região, motivo pelo qual se unem à exigência de reparação integral às vítimas, em todas as esferas públicas e em face de todas as demandas judiciais.

Diante disso, o FETIPA, representando também o FNPETI, entrega essa Carta à representante do Município de Santo Antônio de Jesus e para entes do poder público e da sociedade civil, em face da gravidade do descumprimento de Sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. 

 

Brasil, Bahia, julho de 2023.

 

Assinam conjuntamente:

 

 

Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI)

Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente

 

[1] Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_por.pdf>  Acesso em: 27 jun. 2023.

 

 

  • Bahia
  • Direito da criança e do adolescente
  • Fóruns Estaduais
  • Piores Formas de Trabalho Infantil
  • Trabalho Infantil